Olhos Vendados


Mais uma vez levantava seus olhos úmidos para o vidro um pouco sujo e embaçado mirando aquele horripilante monstro que a encarava do outro lado. Com um tom avermelhado que ia da ponta do nariz ao queixo, marcas roxas em suas pálpebras, olhos avermelhados, cabelos desgrenhados.
Aquelas vozes ainda ecoavam em sua cabeça, os risos estridentes, as comparações medonhas, como esquecer? Todos os dias algo acontecia para reforçar aquelas palavras, aquelas risadas. Estavam certos... Como poderia simplesmente negar? Era um fato!
Juntou as forças que ainda tinha e levantou-se.
- Eu vou acabar com você de uma vez por todas! – O grito que esperava emitir saiu rouco e abafado. Tomou um pouco de distancia e ferozmente atirou-se contra seu inimigo.
O casal que estava no andar inferior, concentrados em sua discussão subitamente cessou ao ouvir acima deles o som de algo se partindo e um baque violento. Entreolharam-se, correram escada acima e ao abrir da porta o grito exasperado da mãe ecoou pelo aposento.
- Camila!!

 Seis anos depois...

Colocar os pés fora de casa sempre lhe fora uma sensação desagradável, mas era necessário.
Sentia como se a cada vez que cruzava o portão, todos os olhos voltavam-se diretamente para ela.
Suas roupas sempre negras de seu luto eterno, seus cabelos sempre soltos, não por gostar deles, mas para esconder sua face e as cicatrizes que tanto a envergonhavam.
Todos os dias sua mãe inventava uma desculpa para que fosse ao mercado. “Deve ser um tipo de punição. Pelo que fiz naquele dia... Por ter uma filha assim...” era o que sempre pensava, mas nunca externava nem desobedecia, realmente sentia-se culpada e merecedora de seu castigo, mediante ao prazer sádico de sua mãe.
Assim ia, mais um dia para a forca, sentindo as alfinetadas dos cochichos e o nojo nos olhos maliciosos da vizinhança.
Puxou um pouco mais as mangas de sua jaqueta, deixando apenas as pontas dos finos e alvos dedos a mostra.
Era inegável que todos olhavam-na, como um bicho de zoológico ou um espécime bizarro que não pertencia ao meio deles. Não era novidade, ela própria sentia-se daquela maneira.
Abaixou a cabeça respirando fundo em resignação, sabia o que todos pensavam, mas suas lágrimas já tinham secado há seis anos e sua vida era um inferno desde que atingira idade suficiente para entender o que sua existência significava.

- Dois reais... De pão... Por favor... - Disse logo que entrou na padaria e alcançou o balcão. Sua voz fora emitido em um tom muito baixo e abafado. Permanecia de cabeça baixa, podia sentir que aquela atitude proveniente dela irritava as atendentes já que praticamente tinham de adivinhar o que ela dizia, mas por outro lado não queria que ninguém tivesse de suportar sua voz esganiçada, assim muitas vezes era atendida muito mais lentamente do que as demais pessoas, ou então muito mais rispidamente.
Porém para seu espanto a voz que lhe respondeu decididamente não era feminina, apesar da docilidade evidenciada em seu tom de voz.
- Desculpe senhorita, o que disse?
Os olhos de Camila se arregalaram e instintivamente foram direcionados a pessoa que lhe falava. Um belo jovem de pele bronzeada, olhos pretos muito intensos e um sorriso fácil que se fez notar assim que os olhos de ambos se encontraram.
- Dois... Reais... - Repetiu ela em um tom um pouco mais audível deixando que o restante da frase fosse emitida apenas em sua mente, ficando apenas com a boca entre-aberta.
O rapaz esboçou um sorriso ainda mais largo e afetuoso.
- De pão? 
A pergunta do rapaz a tirara completamente do transe, sentiu as faces arderem e abaixou a cabeça no mesmo momento limitando-se a sacudi-la em confirmação. "Mas o que foi isso? Só faltava agora você se tornar uma completa abestalhada, Camila!"
Ele pareceu se divertir e logo empenhou-se em cumprir o pedido da menina, entregou-lhe o saco de pão sem demora ainda com um sorriso, que a jovem não ousou levantar os olhos para admirar, estava constrangida demais com o papel que prestara, queria apenas ser invisível naquele momento.
Pagou o pão para a atendente perto da porta e sumiu dali. 
A casa ficava há duas quadras da padaria, um caminho que lhe parecia o próprio portal para o inferno, mas naquele momento passou por ali tão rápido que só percebeu onde estava quando seu rosto em chamas atingiu o travesseiro.
Dona Fátima saiu da lavanderia secando as mãos para ver se a filha chegara, mas tudo que conseguiu avistar foi uma sacola repleta de pães aterrissando sobre a mesa e um vulto atravessar a escada diretamente para o quarto de Camila. Ficara estarrecida por alguns segundos, mas logo em seguida exalou um suspiro cansado enquanto pegava a sacola. Era comum que sua filha se trancasse no quarto logo após ir à padaria, mas nunca àquela velocidade. Decidiu bater na porta dela mais tarde e perguntar o que aconteceu, sabia que não seria recebida naquele momento, se é que, por um milagre, Camila resolvesse recebe-la em qualquer momento que fosse.
A menina tinha a cabeça enterrada no travesseiro e o mordia, como de habito, em completo transtorno, tinha certeza que dera ainda mais motivos para falarem dela naquele momento, que aquele garoto estava rindo dela até o atual momento e que não passava de uma completa idiota.
"Idiota!" Essa palavra estava presente em sua mente a cada segundo de cada dia de sua vida... "Idiota, por que você não morre?" Essa indagação também não lhe abandonava. Mas por mais que tentasse acabar com tudo, nunca conseguia.
Arremessou o travesseiro na parede que atingiu em cheio sua luminária a fazendo ser arremessada no chão e partir-se em diversos pedaços. Enfiou o rosto entre os lençóis emitindo um grunhido débil tentando transformá-lo em grito, sem sucesso, mesmo que sua voz não tivesse abafada pelos cobertores seus gritos nunca passavam de algo fino, falho e estridente.
Entretanto o som de algo se quebrando despertou o sensor de perigo de Dona Fatima, para desespero da filha, que correu escada acima batendo na porta da filha.
- Camila... Está bem? Camila...? - Indagava em um desespero ofegante, para ser respondida em um resmungo relutante.
- Estou mãe, não foi nada... Só derrubei minha luminária acidentalmente...
Mas isso não foi o bastante para livrar-se da visão do rosto apreensivo da mãe diante da porta que entreabria colocando a cabeça para dentro.
- Mãããe... - Reclamou Camila, a qual já encontrava-se ajoelhada no chão recolhendo os cacos.
- Não mexa ai, minha filha! - Disse quase gritando em tom exasperado - Eu pegarei a vassoura e a pá, não mexa nisso!
- Mãããe... - Repetiu a menina contrariada vendo a mãe se afastar sem nem mesmo ouví-la. 
Mas aquela era a vida em sua casa, uma mãe super protetora, um irmão que na maior parte do tempo fingia que ela não existia, o que era melhor assim, pois quando ele não estava fingindo estava a atormentando, e um pai preferia ler jornal em suas samba calção do que reunir-se a família e cumprir sua função de pai, seja ela qual for.
E assim chega o jantar, onde a mãe faz um comentário inoportuno que abala as ultimas gotas de orgulho que a garota achava possuir.
- Olha só, ganhamos três pães a mais!
- O que? Não é possível, eu disse.. Eu disse... - Não chegou a terminar a frase embora a mãe esperasse sua conclusão antes de responder.
- Bem, veja por si mesma.
E ela viu, contou, não havia duvida, assim, antes mesmo de pensar, recolheu os três pães os colocando em uma sacola separada, saiu apressadamente da casa com eles, deixando para trás uma família confusa chamando o nome dela.

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